O CANDOMBLÉ E O TEMPO 
Concepções de tempo, saber e autoridade da África para as religiões afro-brasileiras
Concepções de tempo, saber e autoridade da África para as religiões afro-brasileiras
I
Diferentes sociedades e culturas têm concepções próprias    do tempo, do transcurso da vida, dos fatos acontecidos e da história.    Em sociedades de cultura mítica, também chamadas sem-história,    que não conhecem a escrita, o tempo é circular e se acredita que    a vida é uma eterna repetição do que já aconteceu    num passado remoto narrado pelo mito. As religiões afro-brasileiras,    constituídas a partir de tradições africanas trazidas pelos    escravos, cultivam até hoje uma noção de tempo que é    muito diferente do "nosso" tempo, o tempo do Ocidente e do capitalismo (Fabian,    1985). A noção de tempo, por se ligar à noção    de vida e morte e às concepções sobre o mundo em que vivemos    e o outro mundo, é essencial na constituição da religião.      
Muitos dos conceitos básicos que dão sustentação    à organização da religião dos orixás em termos    de autoridade religiosa e hierarquia sacerdotal dependem do conceito de experiência    de vida, aprendizado e saber, intimamente decorrentes da noção    de tempo ou a ela associados. Assim, muitos aspectos das religiões afro-brasileiras    podem ser melhor compreendidos quando se consideram as noções    básicas de origem africana que os fundamentam. Da mesma maneira se pode    ampliar o conhecimento sobre valores e modos de agir observáveis entre    os seguidores dessas religiões quando consideramos a herança africana    original em oposição a concepções ocidentais com    que a religião africana teve e tem de se confrontar no Brasil, sobretudo    nas situações em que concepções de diferentes origens    culturais se opõem e provocam ou propiciam mudanças naquilo que    os próprios religiosos acreditam ser a tradição afro-brasileira,    seja ela doutrinária, seja ritual. As noções de tempo,    saber, aprendizagem e autoridade, que são as bases do poder sacerdotal    no candomblé, de caráter iniciático, podem ser lidas em    uma mesma chave, capaz de dar conta das contradições em que uma    religião que é parte constitutiva de uma cultura mítica,    isto é a-histórica, se envolve ao se reconstituir como religião    numa sociedade de cultura predominantemente ocidental, na América, onde    tempo e saber têm outros significados.      
O candomblé de que trata o presente texto é a religião    dos orixás formada na Bahia, no século XIX, a partir de tradições    de povos iorubás, ou nagôs, com influências de costumes trazidos    por grupos fons, aqui denominados jejes, e residualmente por grupos africanos    minoritários. O candomblé iorubá, ou jeje-nagô, como    costuma ser designado, congregou, desde o início, aspectos culturais    originários de diferentes cidades iorubanas, originando-se aqui diferentes    ritos, ou nações de candomblé, predominando em cada nação    tradições da cidades ou região que acabou lhe emprestando    o nome: queto, ijexá, efã (Silveira, 2000; Lima, 1984). Esse candomblé    baiano, que proliferou por todo o Brasil, tem sua contrapartida em Pernambuco,    onde é denominado xangô, sendo a nação egba sua principal    manifestação, e no Rio Grande do Sul, onde é chamado batuque,    com sua nação oió-ijexá (Prandi, 1991). Outra variante    iorubá, esta fortemente influenciada pela religião dos voduns    daomeanos, é o tambor-de-mina nagô do Maranhão. Além    dos candomblés iorubás, há os de origem banta, especialmente    os denominados candomblés angola e congo, e aqueles de origem marcadamente    fom, como o jeje-mahim baiano e o jeje-daomeano do tambor-de-mina maranhense.      
Foram principalmente os candomblés baianos das nações    queto (iorubá) e angola (banto) que mais se propagaram pelo Brasil, podendo    hoje ser encontrados em toda parte. O primeiro veio a se constituir numa espécie    de modelo para o conjunto das religiões dos orixás, e seus ritos,    panteão e mitologia são hoje praticamente predominantes. O candomblé    angola, embora tenha adotado os orixás, que são divindades nagôs,    e absorvido muito das concepções e ritos de origem iorubá,    desempenhou papel fundamental na constituição da umbanda, no início    do século XX, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Hoje, todas essas    religiões e nações congregam adeptos que seguem ritos distintos,    mas que se identificam, nos mais diversos pontos do país, como pertencentes    a uma mesma população religiosa, o chamado povo-de-santo, que    compartilha crenças, práticas rituais e visões de mundo,    que incluem concepções da vida e da morte. Terreiros localizados    nas mais diferentes regiões e cidades interligam-se através de    teias de linhagens, origens e influências que remetem a ascendências    que convergem, na maioria dos casos para a Bahia, e que daí apontam,    no caso das nações iorubás, para antigas e, às vezes,    lendárias cidades hoje situadas na Nigéria e no Benim.      
A idéia que norteia o presente trabalho é refazer inicialmente    essa trajetória, religando a África dos orixás aos terreiros    de candomblé de nações iorubás, que podem hoje ser    encontrados na Bahia, no Rio de Janeiro, em São Paulo, no Distrito Federal    e outros Estados, para, num segundo momento, procurar entender como e por quê    as antigas heranças religiosas vão sofrendo mudanças e    adaptações no contexto das transformações socioculturais    que modelam o Brasil atual. Embora o texto presente esteja focado na observação    do candomblé iorubá, para o qual podemos contar com uma etnografia    que permite estabelecer comparações entre o que se observou na    África e o que se observa no Brasil, é fato que muitas das conclusões    podem ser, em maior ou menor grau, aproximadas para o conjunto das religiões    afro-brasileiras, quando não extravasadas para além do universo    estritamente religioso, em outras dimensões da cultura popular brasileira.      
II
Um novo adepto do candomblé ou outra religião afro-brasileira    tradicional que tenha nascido e sido criado fora dessa religião, na qual    ele ingressa por escolha pessoal, não é caso raro (Prandi, 2000a).    Desde que o candomblé se transformou numa religião aberta a todos,    independentemente da origem racial, étnica, geográfica ou de classe    social, grande parte dos seguidores, ou a maior parte em muitas regiões    do Brasil, é de adesão recente, não tendo tido anteriormente,    nem mesmo no âmbito familiar, maior contato com valores e modos de agir    característicos dessa religião. Na maioria dos casos, aderir a    uma religião também significa mudar muitas concepções    sobre o mundo, a vida, a morte. O novo adepto do candomblé, ao freqüentar    o terreiro, o templo, e participar das inúmeras atividades coletivas    indispensáveis ao culto, logo se depara com uma nova maneira de considerar    o tempo. Ele terá que ser ressocializado para poder conviver com coisas    que, nos primeiros contatos, lhe parecerão estranhas e desconfortáveis.    Ele tem de aprender que tudo tem sua hora, mas que essa hora não é    simplesmente determinada pelo relógio e sim pelo cumprimento de determinadas    tarefas, que podem ser completadas antes ou depois de outras, dependendo de    certas ocorrências, entre as quais algumas imprevisíveis, o que    pode adiantar ou atrasar toda a cadeia de atividades. Aliás, esses termos    "atrasar" e "adiantar" são estranhos à situação    que desejo considerar, pois no candomblé, como já disse, tudo    tem seu tempo, e cada atividade se cumpre no tempo que for necessário.    É a atividade que define o tempo e não o contrário.      
As festas de candomblé, quando são realizadas as celebrações    públicas de canto e dança, as chamadas cerimônias de barracão,    durante as quais os orixás se manifestam por meio do transe ritual, são    precedidas de uma série de ritos propiciatórios, que envolvem    sacrifício de animais, preparo das carnes para o posterior banquete comunitário,    fazimento das comidas rituais oferecidas aos orixás que estão    sendo celebrados, cuidado com os membros da comunidade que estão recolhidos    na clausura para o cumprimento de obrigações iniciáticas,    preparação da festa pública e finalmente a realização    da festa propriamente dita, ou seja, o chamado toque. Preparar o toque inclui    cuidar das roupas, algumas costuradas especialmente para aquele dia, que devem    ser lavadas, engomadas e passadas a ferro (é sempre uma enormidade de    roupas para engomar e passar!); pôr em ordem os adereços, que devem    ser limpos e polidos; preparar as comidas que serão servidas a todos    os presentes e providenciar as bebidas; decorar o barracão, colhendo-se    para isso as folhas e flores apropriadas etc. etc.      
Num terreiro de candomblé, praticamente todos os membros da casa participam    dos preparativos, sendo que muitos desempenham tarefas específicas de    seus postos sacerdotais. Todos comem no terreiro, ali se banham e se vestem.    Às vezes, dorme-se no terreiros noites seguidas, muitas mulheres fazendo-se    acompanhar de filhos pequenos. É uma enormidade de coisas a fazer e de    gente as fazendo. Há uma pauta a ser cumprida e horários mais    ou menos previstos para cada atividade, como "ao nascer do sol", "depois do    almoço", "de tarde", "quando o sol esfriar", "de tardinha", "de noite".    Não é costume fazer referência e nem respeitar a hora marcada    pelo relógio e muitos imprevistos podem acontecer. No terreiro, aliás,    é comum tirar o relógio do pulso, pois não tem utilidade.    Durante a matança, os orixás são consultados por meio do    jogo oracular para se saber se estão satisfeitos com as oferendas, e    podem pedir mais. De repente, então, é preciso parar tudo e sair    para providenciar mais um cabrito, mais galinhas, mais frutas, ou seja lá    o que for. Em qualquer dos momentos, orixás podem ser manifestar e será    preciso cantar para eles, se não dançar com eles. Os orixás    em transe podem, inclusive, impor alterações no ritual. Eles podem    ficar muitas horas "em terra" enquanto todos os presentes lhes dão atenção    e tudo o mais espera. Durante o toque, a grande cerimônia pública,    a presença não prevista de orixás em transe implica o alargamento    do tempo cerimonial, uma vez que eles devem também ser vestidos e devem    dançar. A chegada de dignitários de outros terreiros, com seus    séquitos, obriga a homenagens adicionais e outras seqüências    de canto e dança. Embora haja um roteiro mínimo, a festa não    tem hora para acabar. Não se sabe exatamente o que vai acontecer no minuto    seguinte, o planejamento é inviabilizado pela intervenção    dos deuses.      
Quando se vai ao terreiro, é aconselhável não marcar    nenhum outro compromisso fora dali para o mesmo dia, pois não se sabe    quando se pode ir embora, não se sabe quanto tempo vai durar a visita,    a obrigação, a festa. Aliás, candomblé também    não tem hora certa para começar. Começa quando tudo estiver    "pronto". Os convidados e simpatizantes vão chegando num horário    mais ou menos previsto, mas podem esperar horas sentados. Então muitos    preferem chegar bem tarde, o que pode acarretar novos atrasos. E não    adianta reclamar, pois logo alguém dirá que "candomblé    não tem hora". Uma vez, depois de muita espera, perguntei a que horas    iria o candomblé realmente começar. A resposta foi: "Depois que    mãezinha (a mãe-de-santo) trocar de roupa." Enfim, o tempo será    sempre definido pela conclusão das tarefas consideradas necessárias    no entender do grupo, a fórmula: "quando estiver pronto".      
Essa idéia de que o tempo está sujeito ao acontecer dos eventos    e ao sabor da realização de tarefas necessárias pode ser    observada no cotidiano dos terreiros também fora das festas. Pesquisadores    que estão se iniciando em trabalho de campo se espantam muito com a "falta    de horário" das mães e pais-de-santo, tendo que esperar horas    e horas, se não dias, para fazer uma entrevista que pensavam estar agendada    para um horário bem determinado. Clientes que vão ao terreiro    para o jogo de búzios ou outros serviços mágicos também    podem se sentir incomodados pelo modo como o povo-de-santo usufrui do tempo.      
Em 1938, a antropóloga americana Ruth Landes veio ao Brasil para estudar    as relações raciais entre nós e permaneceu vários    meses em pesquisa junto aos candomblés de Salvador. É muito interessante    o relato de seu primeiro encontro com a jovem Mãe Menininha do Gantois,    que décadas depois viria a ser a mais famosa mãe-de-santo do Brasil.    Marcada a visita, Menininha a recebeu e com ela começou a conversar com    muita simpatia. Chegou então uma filha-de-santo que cumprimentou a mãe    com todas as reverências, dizendo-lhe alguma coisa em voz baixa. Menininha    pediu licença à antropóloga para se retirar um momento,    dizendo-lhe que ficasse à vontade e que voltaria em seguida. A tarde    se esvaiu, com muita movimentação na casa, muitas pessoas chegando    e saindo, mas a mãe-de-santo não voltou à sala. Com o dia    já escuro, discretamente, Ruth Landes voltou para seu hotel. Só    tempos depois pôde continuar sua conversa com a ialorixá. Soube    mais tarde a antropóloga que a mulher que interrompera a entrevista trazia    problemas e que a mãe fora cuidar dos rituais necessários para    resolver a aflição da filha (Landes, 1967: 86-99). Comentando    o episódio, Ruth Landes escreveu: "Durante a minha permanência    na Bahia pasmava-me a liberdade que as mães tomavam com o tempo. Menininha    não voltou à sala aquele dia e como soube, subseqüentemente,    sempre se atrasava, sempre demorava. Era um privilégio da sua posição,    aceito como natural numa terra de aristocracia e escravidão. Que era    o tempo? O tempo era o que se faz com ele e ela estava sempre ocupada" (Landes,    1967, p. 95). O que Landes atribuiu a privilégios numa terra de aristocracia    e escravidão era, entretanto, a expressão de uma concepção    africana de tempo muito diferente daquela a que estamos habituados por força    de nossa cultura européia.      
Para o pensador africano John Mbiti, enquanto nas sociedades ocidentais o    tempo pode ser concebido como algo a ser consumido, podendo ser vendido e comprado    como se fosse mercadoria ou serviço potenciais - tempo é    dinheiro -, nas sociedades africanas tradicionais o tempo tem que ser criado    ou produzido. Mbiti afirma que "o homem africano não é escravo    do tempo, mas, em vez disso, ele faz tanto tempo quanto queira". Comenta que,    por não conhecerem essa concepção, muitos estrangeiros    ocidentais não raro julgam que os africanos estão sempre atrasados    naquilo que fazem, enquanto outros dizem: "Ah! Esses africanos ficam aí    sentados desperdiçando seu tempo na ociosidade" (Mbiti, 1990, p. 19).      
III
Antes da imposição do calendário europeu, os iorubás,    que são a fonte principal da matriz cultural do candomblé brasileiro    (Prandi, 2000b), organizavam o presente numa semana de quatro dias. O ano era    demarcado pela repetição das estações e eles não    conheciam sua divisão em meses. A duração de cada período    de tempo era marcada por eventos experimentados e reconhecidos por toda a comunidade.    Assim, um dia começava com o nascer do sol, não importando se    às cinco ou às sete horas, em nossa contagem ocidental, e terminava    quando as pessoas se recolhiam para dormir (Mbiti, 1990, p. 19), o que podia    ser às oito da noite ou à meia-noite em nosso horário.    Essas variações, importantes para nós, com nosso relógio    que controla o dia, não o eram para eles.      
Cada um dos quatro dias da semana iorubá tradicional, chamada ossé,    é dedicado a uma divindade (Ojô Awô, Ojô Ogum, Ojô    Xangô, Ojô Obatalá, respectivamente, dia do segredo ou de    Ifá, dia de Ogum etc.), regulando uma atividade essencial para a vida    de todos os iorubás tradicionais: o mercado. O mercado ou feira funciona    em cada aldeia e cidade num dos dias da semana, todas as semanas ou a cada duas,    três ou quatro semanas. Até hoje, as mulheres vão vender    seus produtos nos mercados de diferentes cidades, fazendo dessa atividade uma    instituição fundamental para a sociabilidade iorubá e a    regulação do cotidiano. Os iorubás tradicionais reconheciam    a existência do mês lunar, mas lhe davam pouca importância,    sendo muito mais importantes as épocas de realização das    grandes festas religiosas, marcadas pelas estações e fases agrícolas    do ano, que eles chamavam de odum. O dia era dividido não em horas,    mas em períodos, que poderíamos traduzir por expressões    como "de manhã cedo", "antes do sol a pino", "com o sol na vertical",    "de tardinha" etc. A noite era marcada pelo cantar do galo.      
A contagem dos dias e das semanas era praticada em função de    cada evento, de modo que a mulher era capaz de controlar a duração    de sua gestação, assim como o homem contava o desenrolar dos seus    cultivos, mas sem datação (Ellis, 1974, pp. 142-151). Os iorubás    tradicionais consideravam duas grandes estações, uma chuvosa e    outra seca, separadas por uma estação de fortes ventos, de modo    que cada ano podia durar alguns dias a mais ou a menos, dependendo do atraso    ou adiantamento das estações, mas isso não importava, uma    vez que os dias não eram contados. Os anos passavam como passavam as    semanas e os dias, num fruir repetitivo, não se computando aritmeticamente    cada repetição.      
Nas cortes dos reis iorubás havia funcionários encarregados    de manter viva a memória dos reis, e eles eram treinados para recitar    os eventos importantes que marcaram o reinado de cada soberano, mas os episódios    não eram datados, fazendo com que a reconstrução recente    da história dos povos iorubás não comportasse uma cronologia    para os tempos anteriores à chegada dos europeus, vendo-se obrigada a    operar com mitos e memórias lançados num passado sem datas (Johnson,    1921).      
Como o tempo é cíclico, fatos inesperados são recebidos    com espanto. Assim, as ocorrências cíclicas da natureza -    por exemplo, as fases da lua e as estações climáticas -    são encaradas como acontecimentos normais da vida, mas o que escapa do    ritmo normal do tempo é visto com preocupação e medo, como    um eclipse, uma enchente etc. O nascimento de gêmeos, que contraria o    desenlace normal da gestação, constitui também um fato    excepcional.      
Os afro-descendentes assimilaram o calendário e a contagem de tempo    usados na sociedade brasileira, mas muitas reminiscências da concepção    africana podem ser encontradas no cotidiano dos candomblés. A chegada    de um novo odum, ano novo, é festejada com ritos oraculares para    se saber qual orixá o preside, pois cada ano vê repetir-se a saga    do orixá que o comanda: será um ano de guerra, se o orixá    for um guerreiro, como Ogum, de fartura, se o orixá for um provedor,    como Oxóssi, será de reconciliações, se for de um    orixá da temperança, como Iemanjá, e assim por diante.    O ossé, a semana, constituiu-se num rito semanal de limpeza e    troca das águas dos altares dos orixás. Cada dia da semana, agora    a semana de sete dias, é dedicado a um ou mais orixás, sendo cada    dia propício a eventos narrados pelos mitos daqueles orixás, por    exemplo, a quarta-feira é dia de justiça porque é dia de    Xangô. As grandes festas dos deuses africanos adaptaram-se ao calendário    festivo do catolicismo por força do sincretismo que, até bem pouco    tempo, era praticamente compulsório, mas o que a festa do terreiro enfatiza    é o mito africano, do orixá, e não o do santo católico.      
Embora o candomblé e outras religiões de origem africana sejam    de formação recente, aqui constituídas somente depois das    primeiras décadas do século XIX, as datas de fundação    dos terreiros, assim como as que marcam os reinados de sucessivas mães    e pais-de-santo no início, são desconhecidas. Seus nomes são    bem lembrados e seus feitos são cantados e festejados nas cerimônias    que louvam os antigos fundadores - o padê nos candomblés    mais velhos -, mas nada de datas. Esse passado brasileiro também    já se fez mito.      
IV
Nas palavras de Wole Soyinka, "o pensamento tradicional opera não uma    sucessão linear de tempo mas uma realidade cíclica" (Soyinka,    1995, p. 10). O tempo escalar, que se mede matematicamente, podendo ser somado,    subtraído, dividido etc., não faz nenhum sentido para o pensamento    africano tradicional. Para os ocidentais, o tempo é uma variável    contínua, uma dimensão que tem realidade própria, independente    dos fatos, de tal modo que são os fatos que se justapõem à    escala do tempo. É o tempo da precisão, que objetiva o cálculo,    que viabiliza a projeção e fundamenta a racionalidade - tempo    da ciência histórica e da modernidade. Nessa escala ocidental do    tempo, os acontecimentos são enfileirados uns após outros, em    seqüências que permitem organizá-los como anteriores e posteriores,    uns como causa e outros como conseqüência, construindo-se uma cadeia    de correlações e causações que conhecemos como história.    Entre nós, o relógio e o calendário permitem contar o tempo    transcorrido entre dois eventos, sendo possível, mesmo num passado distante,    saber que fatos estão mais próximos entre si e quais mais se distanciam.    Um segmento de tempo pode ser comparado com outro, por exemplo, o tempo médio    da vida de um homem. Assim, todos os fatos relevantes são datados, isto    é, descritos num calendário seqüencial escalonado em intervalos    iguais (século, ano, mês, dia, hora). Esse tempo é projetado    para a frente, de modo que o que vai acontecer compõe com o presente    e com o já acontecido uma linha sem solução de continuidade,    estando o futuro determinado pelo que o precede, podendo assim ser controlado    pela ação no presente.      
Para os africanos tradicionais, o tempo é uma composição    dos eventos que já aconteceram ou que estão para acontecer imediatamente.    É a reunião daquilo que já experimentamos como realizado,    sendo que o passado, imediato, está intimamente ligado ao presente, do    qual é parte, enquanto o futuro nada mais é que a continuação    daquilo que já começou a acontecer no presente, não fazendo    nenhum sentido a idéia do futuro como acontecimento remoto desligado    de nossa realidade imediata (Mbiti, 1990, pp. 16-17). O futuro que se expressa    na repetição cíclica dos fatos da natureza, como as estações,    as colheitas vindouras, o envelhecer de cada um, é repetição    do que já se conheceu, viveu e experimentou, não é futuro.    Não há sucessão de fatos encadeados no passado distante,    nem projeção do futuro. A idéia de história como    a conhecemos no Ocidente não existe; a idéia de fazer planos para    o futuro, de planejar os acontecimentos vindouros, é completamente estapafúrdia.    Se o futuro é aquilo que não foi experimentado, ele não    faz sentido nem pode ser controlado, pois o tempo é o tempo vivido, o    tempo acumulado, o tempo acontecido. Mais que isso, o futuro é o simples    retorno do passado ao presente, logo, não existe.      
Para os iorubás e outros povos africanos, antes do contato com a cultura    européia, os acontecimentos do passado estão vivos nos mitos,    que falam de grandes acontecimentos, atos heróicos, descobertas e toda    sorte de eventos dos quais a vida presente seria a continuação.    Ao contrário da narrativa histórica, os mitos nem são datados    nem mostram coerência entre si, não existindo nenhuma possibilidade    de julgar se um mito é mais verossímil, digamos, do que outro.    Cada mito atende a uma necessidade de explicação tópica    e justifica fatos e crenças que compõem a existência de    quem o cultiva, o que não impede de haver versões conflitantes    quando os fatos e interesses a justificar são diferentes. O mito fala    do passado remoto que explica a vida no presente. O tempo mítico é    apenas o passado distante, e fatos separados por um intervalo de tempo muito    grande podem ser apresentados nos mitos como ocorrências de uma mesma    época, concomitantes. Cada mito é autônomo e os personagens    de um podem aparecer em outro, com outras características e relações,    às vezes, contraditórias, sem que isso implique algum tipo de    questionamento da sua veracidade. Os mitos são narrativas parciais e    sua reunião não propicia o desenho de qualquer totalidade. Não    existe um fio narrativo na mitologia, como aquele que norteia a construção    da história para os ocidentais. O tempo do mito é o tempo das    origens, e parece existir um tempo vazio entre o fato contado pelo mito e o    tempo do narrador. No mundo mítico, os eventos não se ajustam    a um tempo contínuo e linear. A mitologia dos orixás, que fala    da criação do mundo e da ação dos deuses na vida    cotidiana, bem o demonstra (Prandi, 2001).      
Esse passado remoto, de narrativa mítica, é coletivo e fala    do povo como um todo. Passado de geração a geração,    por meio da oralidade, é ele que dá o sentido geral da vida para    todos e fornece a identidade grupal e os valores e normas essenciais para a    ação naquela sociedade, confundindo-se plenamente com a religião.    O tempo cíclico é o tempo da natureza, o tempo reversível,    e também o tempo da memória, que não se perde, mas se repõe.    O tempo da história, em contrapartida, é o tempo irreversível,    um tempo que não se liga nem à eternidade, nem ao eterno retorno    (Prigogine, 1991: 59). O tempo do mito e o tempo da memória descrevem    um mesmo movimento de reposição: sai do presente, vai para o passado    e volta ao presente - não há futuro. A religião é    a ritualização dessa memória, desse tempo cíclico,    ou seja, a representação no presente, através de símbolos    e encenações ritualizadas, desse passado que garante a identidade    do grupo - quem somos, de onde viemos, para onde vamos? É o tempo    da tradição, da não-mudança, tempo da religião,    a religião como fonte de identidade que reitera no cotidiano a memória    ancestral. No candomblé, emblematicamente, quando o filho-de-santo entra    em transe e incorpora um orixá, assumindo sua identidade representada    pela dança característica que lembra as aventuras míticas    dessa divindade, é o passado remoto, coletivo, que aflora no presente    para se mostrar vivo, o transe ritual repetindo o passado no presente, numa    representação em carne e osso da memória coletiva.      
V
Como parte da vida que transcorre no presente, e numa dimensão diferente    daquela do passado mítico, existe um passado próximo formado pelos    eventos que compõem a vivência particular do indivíduo e    que depende de sua memória pessoal. Os mortos, por exemplo, enquanto    são lembrados pelos parentes vivos, fazem parte desse passado recente    que se confunde com o presente e, assim, participam da experiência presente    dos vivos enquanto estiverem vivos na lembrança dos vivos. Continuam    a fazer parte da família, sendo por ela louvados e alimentados, até    que um dia possam retornar reencarnados. Com a reencarnação tudo    se repete, o ciclo se recompõe. Assim como se repetem as estações    do ano, as fases da lua, os ciclos reprodutivos, o desenrolar das semeaduras    às colheitas, a vida do homem se repete na reencarnação:    cíclica é a natureza, cíclica é a vida do homem,    cíclico é o tempo.      
Para os iorubás tudo acontece em três planos: o Aiê,    que é este nosso mundo, o do tempo presente; o Orum, que é    o outro mundo, a morada dos deuses orixás e dos antepassados, o mundo    mítico do passado remoto; e o mundo intermediário dos que estão    aguardando para renascer. Este mundo dos que vão nascer está próximo    do mundo aqui-e-agora, o Aiê, e representa o futuro imediato, atado    ao presente pelo fato de que aquele que vai nascer de novo continua vivo na    memória de seus descendentes, participando de suas vidas e sendo por    eles alimentados, até o dia de seu renascimento como um novo membro de    sua própria família. Para o homem, o mundo das realizações,    da felicidade, da plenitude é o mundo do presente, o Aiê    (Babatunde, 1992, p. 33). Não há prêmio nem punição    no mundo dos que vão nascer, nada ali acontece. Os homens e mulheres    pagam por seus crimes em vida e são punidos pelas instâncias humanas.    As punições impostas aos humanos pelos deuses e antepassados por    causa de atos maus igualmente não os atingem após a morte, mas    se aplicam a toda coletividade à qual o infrator pertence, e isso também    acontece no Aiê. Trata-se de uma concepção ética    focada na coletividade e não no indivíduo (Mbon, 1991, p. 102),    não existindo a noção ocidental cristã de salvação    no outro mundo nem a de pecado. O outro mundo habitado pelos mortos é    temporário, transitório, voltado para o presente dos humanos.    Nem a vida espiritual tem expressão no futuro.      
É preciso que o morto não tenha sido esquecido pelos seus familiares    para poder nascer de novo, pois seu lugar é sempre na família.    São duas as condições para se continuar vivo na memória,    no presente. Primeiro, é preciso ter tido muitos filhos, pois um homem    sem prole não tem quem cultive sua memória. Um homem sem prole    não tem uma grande família onde ele possa renascer. Para tanto    é necessário ter muitas mulheres e poder sustentá-las.    Segundo, deve ter vivido muito, para que seus atos memoráveis tenham    sido testemunhados pelos filhos, netos e, quem sabe, bisnetos. Muitos nomes    iorubás dados a uma nova criança referem-se àquele de quem    ela se acredita ser simplesmente o retorno, como Babatundê, que quer dizer    o pai está de volta; Iyabó, a mãe retorna; Babatunji, o    pai acordou de novo. A memória depende da convivência, e é    graças a ela que se conhece, ama e respeita o outro. A lembrança    é um sentimento de veneração respeitosa e afetiva. Para    renascer, então, tem que se viver até uma idade provecta. Ai dos    que morrem cedo, estes terão dificuldade para renascer. Quando se morre    na tenra infância pode-se renascer como outra criança gerada no    útero da mesma mãe (Oduyoye, 1996, p. 113). Contudo, este não    é um nascimento festejado, pelo contrário, é temido, pois    a criança renascida não tem compromisso com o presente, com a    família, com o Aiê, e pode perfeitamente querer morrer de    novo cedo, sem viver, pelo simples e degenerado prazer de nascer por nascer.    Essas criaturas, chamadas abicus, literalmente, nascido para morrer,    só fazem sofrer as mães e frustrar os pais, que precisam desesperadamente    de uma longa descendência, pois os filhos que geram filhos são    a garantia da eternidade celebrada no presente.      
Quando a memória do morto extravasa os limites de sua família    particular e passa a ser louvada pela comunidade mais ampla da aldeia, da cidade,    de uma grande linhagem que reúne muitas famílias, quando esta    lembrança deixa de ser privativa de alguns indivíduos para se    incorporar na lembrança coletiva, o morto não precisa mais renascer    entre os vivos para garantir o ciclo de sua eternidade. Ele vai para o Orum,    tornando-se, então, um antepassado. Isso acontece com os grandes reis,    heróis, fundadores e líderes. Do Orum, o mundo mítico    onde habita com os deuses orixás, ele passa a atuar diretamente nos acontecimentos    do Aiê: vai interferir no presente, ajudando e punindo os humanos.    O passado mítico é um passado vivo, e seus habitantes o tempo    todo agem e interferem no presente. Os antepassados, que os iorubás chamam    de egunguns, não se recusam a vir ao Aiê e conviver    com os humanos e o fazem através de seus sacerdotes nos grandes festivais    de máscaras em que se cultua a memória ancestral coletiva daquela    comunidade (Drewal, 1992, cap. 6).      
Quando, numa outra dimensão, o antepassado conquista o respeito de    todo um povo, quando sua cidade impõe seu culto a outras, quando ele    se desprende da comunidade original e passa a fazer parte da memória    de toda uma sociedade, a reverência por ele recebida se expande, sua influência    no Aiê cresce, seu poder no mundo do presente se eterniza: ele    é, então, um orixá, um entre os deuses iorubás.    Sua relação não é mais com os parentes nem com os    membros da sua comunidade, mas com a humanidade. Ele pode até mesmo ser    reverenciado em terras do além-mar, onde se fará atuante no presente    de muitos outros povos, como ocorreu com a diáspora iorubá na    América por força da escravidão, com a fundação    de novos cultos e religiões, como o candomblé, o tambor-de-mina,    o xangô e o batuque, no Brasil, e a santeria, em Cuba. Ele é parte    do passado mítico, e o passado mítico responde pelo presente.    O passado mítico é o que existe desde o começo dos tempos,    o que sempre foi, o que não é datado.      
Os iorubás acreditam que o espírito do ser humano é constituído    de diversas partes imateriais, sua alma não é indivisível    como na concepção judaico-cristã. Há uma individualidade    espiritual chamada ori que só existe no presente, isto é,    enquanto se vive no Aiê. Ela é responsável pelas    realizações humanas, contém o destino de cada pessoa. O    ori morre e é destruído juntamente com o corpo material.    Outra parte é constituída da memória cultuada pela família    do morto, o egum, que volta ao presente por meio da reencarnação,    que mantém o morto no presente. E, como parte fundamental, talvez a mais    importante, há o orixá particular da pessoa, considerado o seu    antepassado remoto. O orixá particular da pessoa é uma ínfima    porção do orixá geral cultuado por todos. É o vínculo    do ser humano com o divino, o eterno, o passado mítico. Com a morte do    corpo, o orixá pessoal retorna ao orixá geral, àquele que    existe desde o princípio dos tempos. O ori representa o presente    do ser humano; o egum, a sua capacidade de retornar sempre a esse presente,    ou se eternizar no Orum como antepassado egungum; o orixá    pessoal, a ligação do presente com o mito, com o passado remoto    que age sobre o presente e do qual recebe as honrarias sacrificiais. O passado    reproduzido no presente pela infinidade de humanos, nos quais os orixás    se perpetuam a cada nascimento, pois cada ser humano descende de um orixá,    fecha de novo o ciclo africano do tempo.      
A escravidão destruiu as estruturas familiares dos africanos trazidos    como escravos para a América, submeteu-os a um ritmo de trabalhado compulsório    e alienado, impôs novas crenças e um novo modo de vida cotidiana    que pressupunha uma outra maneira de contar o tempo e de o conceber. Assim,    quando a religião dos orixás foi reconstruída entre nós,    muitos dos aspectos e conceitos da antiga cultura africana deixaram de fazer    sentido e muitos desapareceram. Mas muito das velhas idéias e noções    se reproduziram na cultura religiosa dos terreiros de candomblé e de    outras religiões dedicadas aos orixás iorubanos, voduns fons e    inquices bantos, assim como muita coisa se conservou, em maior ou menor escala,    em aspectos não religiosos da cultura popular de influência africana.      
No Brasil dos dias de hoje, o candomblé continua a cultuar a memória    de seus mortos ilustres, invocados em diferentes cerimônias e relembrados    de geração a geração, mas não pôde    preservar a idéia de que os mortos renascem na família carnal,    pois a adesão ao candomblé é individual e a família-de-santo    não corresponde necessariamente à família biológica.    A idéia do antepassado egungum veio ocupar um lugar secundário    na religião, apenas complementar na religião dos orixás,    que na maioria dos terreiros de formação recente é praticada    sem essa referência. Como a religião dos orixás congrega    grupos minoritários, cada um pertencente a um determinado terreiro, autônomo    em relação aos demais, grupos formados por adeptos que fazem parte    de uma sociedade mais ampla, cuja cultura é predominantemente ocidental    e cristã, o culto a antepassados coletivos que controlam a moralidade    de uma cidade inteira, digamos, como ocorria originalmente em terras africanas,    não se viabilizou por razões evidentes. O mundo brasileiro fora    dos muros do terreiro não é território dos antepassados,    como era na África tradicional.      
A concepção iorubá de reencarnação sofreu    na América a influência da idéia cármica de reencarnação    do espiritismo kardecista - religião de origem européia que    prega a reencarnação como mecanismo de um sistema ético    de premiação e punição dos atos praticados em vida    e que permite ao espírito do morto aperfeiçoar-se através    de muitas vidas (Prandi, 2000c). O kardecismo tem uma concepção    de tempo repetitivo em espiral, que expressa mudança, evolução    espiritual, aperfeiçoamento voltado para o futuro neste e no outro mundo,    tudo muito diferente da visão africana.      
Além da influência kardecista, as concepções africanas    da morte também foram se borrando no contato da religião dos orixás    com as noções próprias do catolicismo hegemônico,    durante mais de um século de sincretismo. O rito funerário do    axexê (Prandi, 1999), celebrado para desligar o morto da vida presente,    para que ele possa partir e depois voltar como outra pessoa, rito que representa    a quebra de todos os vínculos do morto com o Aiê, continua    a ser praticado, mas tende hoje a ser realizado com mais freqüência    nas exéquias dos líderes mais expressivos do terreiro de candomblé.    Raramente se realiza quando o morto ocupa um lugar inferior na hierarquia religiosa.    Justifica-se hoje mais pela etiqueta da corte do que pela concepção    tradicional de reencarnação. Não parece, contudo, que os    seguidores do candomblé e de outras religiões afro-brasileiras    tenham incorporado decisivamente nem a noção de carma do espiritismo    nem a idéia salvacionista cristã de julgamento, prêmio e    punição após a morte, de tal modo que o futuro que se descortina    depois desta vida, segundo a concepção cristã, continua    a ser para os religiosos brasileiros afro-descendentes, pelo menos em certa    medida, um tempo desprovido de sentido: depois da morte, o que se esperaria,    assim, é voltar para este mundo, para o presente do Aiê.      
VI
Para os iorubás o tempo é cíclico, tudo o que acontece    é repetição, nada é novidade. Aquilo que nos acontece    hoje e que está prestes a acontecer no futuro imediato já foi    experimentado antes por outro ser humano, por um antepassado, pelos próprios    orixás. O oráculo iorubano, praticado pelos babalaôs, que    são os sacerdotes de Ifá ou Orunmilá, o deus da adivinhação,    baseia-se no conhecimento de um grande repertório de mitos que falam    de toda sorte de fatos acontecidos no passado remoto e que voltam a acontecer,    envolvendo personagens do presente. É sempre o passado que lança    luz sobre o presente e o futuro imediato.      
Conhecer o passado é deter as fórmulas de controle dos acontecimentos    da vida dos viventes. Esse passado mítico, que se refaz a cada instante    no presente, é narrado pelos odus do oráculo de Ifá.    Cada odu é um conjunto de mitos, cabendo ao babalaô descobrir    qual deles conta a história que está acontecendo ou que vai acontecer    na vida presente do consulente que o procura em busca de solução    para suas aflições. Quando o adivinho identifica o mito que se    relaciona com o presente do consulente, e o faz usando seus apetrechos mágicos    de adivinhação, fica sabendo quais procedimentos rituais -    como sacrifícios, recolhimento e purificações - devem    ser usados para sanar os males que afligem o cliente. A fórmula receitada    é a mesma aplicada no passado, quando foi usada com sucesso, conforme    narra o mito. Nada é novo, tudo se refaz. Também é atribuição    do babalaô identificar, no nascimento de uma criança, a reencarnação    de um ente querido. Não se pode dar nome a uma criança sem antes    saber de onde ela vem, pois um nascimento não é uma tábula    rasa. É um retorno. O babalaô é ao mesmo tempo o guardião    do passado e o decifrador do presente. Ele usa o passado para a decifração    do presente. Seu demorado e penoso treinamento o obriga a aprender de cor milhares    de versos, os poemas de Ifá, que narram o passado mítico de seu    povo, seus deuses e seus heróis (Prandi, 1996, cap. 3).      
Não há mais babalaôs no Brasil, mas os pais e mães-de-santo    operam as antigas técnicas oraculares. Não aprendem os poemas    de Ifá, atribuição dos antigos babalaôs, mas sua    magia ainda consiste em descobrir o odu que rege cada situação    presente, como meio de desvendar no presente as mesmas causas dos acontecimentos    no passado. E saná-las, com o mesmo receituário.      
VII
À concepção africana de tempo no candomblé e em    outras denominações religiosas de origem negro-africana estão    intimamente associadas as idéias de aprendizado, saber e competência.    Para os africanos tradicionais, o conhecimento humano é entendido, sobretudo,    como resultado do transcorrer inexorável da vida, do fruir do tempo,    do construir da biografia. Sabe-se mais por que se é velho, porque se    viveu o tempo necessário da aprendizagem. A aprendizagem não é    uma esfera isolada da vida, como a nossa escola, mas um processo que se realiza    a partir de dentro, participativamente. Aprende-se à medida que se faz,    que se vive. Com o passar do tempo, os mais velhos vão acumulando um    conhecimento a que o jovem só terá acesso quando tiver passado    pelas mesmas experiências. Mesmo quando se trata de conhecimento especializado,    o aprendizado é por imitação e repetição.    As diferentes confrarias profissionais, especialmente as de caráter mágico    e religioso, dividem as responsabilidades de acordo com a senioridade de seus    membros e estabelecem ritos de passagem que marcam a superação    de uma etapa de aprendizado para ingresso em outra, que, certamente, implica    o acesso a novos conhecimentos, segredos ou mistérios da confraria. A    importância dos ritos de passagem foi enfaticamente preservada nas religiões    afro-brasileiras; ritos que são sua marca mais notável. Na carreira    iniciática, cada etapa corresponde, evidentemente, ao compromisso de    novas obrigações e ao alcance de novos privilégios. A passagem    de uma etapa para outra não é determinada pelo tempo escalar,    nem poderia, mas por aquilo que realmente o iniciado é capaz de fazer.    Mais uma vez, o que conta é a experiência. Ser mais velho é    saber certo, fazer mais e melhor. Muitas das diferentes atribuições    profissionais, talvez as mais importantes, são herdadas, passadas de    pai para filho, de mãe para filha, numa clara reafirmação    de que a vida é repetição.      
Os iorubás só conheceram a escrita com a chegada dos europeus.    Assim, todo o conhecimento tradicional baseia-se na oralidade. Mitos, fórmulas    rituais, louvações, genealogias, provérbios, receitas medicinais,    encantamentos, classificações botânicas e zoológicas,    tudo é memorizado. Tudo se aprende por repetição, e a figura    do mestre acompanha por muito tempo a vida dos aprendizes. Os velhos são    os depositários da cultura viva do povo e a convivência com eles    é a única maneira de aprender o que eles sabem. Os velhos são    os sábios e a vida comunitária depende decisivamente de seu saber,    de seus mistérios. O ancião detém o segredo da tradição.    Sua palavra é sagrada, pois é a única fonte de verdade.      
Essa forma de conceber o aprendizado e o saber entra em crise nos candomblés    quando seus membros, já escolarizados, passam a se valer das fórmulas    escritas que, pouco a pouco, vão surgindo disponíveis nos livros    e em outras publicações. Mais que isso, os seguidores das religiões    dos orixás, voduns e inquices são, hoje em dia, provenientes das    mais diferentes origens e classes sociais e todos eles, ou sua grande maioria,    conhecem a experiência efetiva de se aprender na escola. Esta é    orientada para a efetivação do aprendizado rápido, racional    e impessoal, o saber premido pelo tempo de calendário. A escola, mecanismo    de transmissão de todo o saber considerado importante pela sociedade,    é uma instituição para jovens. Em nossa sociedade, é    na juventude que se domina o conhecimento e espera-se que os jovens saibam mais    do que os velhos. De fato, um jovem de vinte anos, hoje, pode saber mais do    que seus pais e muito mais do que seus avós, porque aprende na escola,    onde o conhecimento avança rapidamente. O saber está fora de casa,    fora da família. E o conhecimento nunca é definitivo, pois está    em permanente expansão e constante reformulação, devendo    cada um atualizar-se, tomar ciência das novas descobertas que surgem sem    cessar.      
Em nossa sociedade, a velhice é concebida como a idade da estagnação,    do atraso, da aposentadoria, que significa etmologicamente recolhimento aos    aposentos e conseqüente abandono da vida produtiva e pública. O    jovem não aprende mais convivendo com os mais velhos, aprende com a leitura    e as instituições da palavra escrita, e não há professor    sem livro. O conhecimento através da escrita, cujo acesso se amplia com    a aquisição de livros, com as consultas às bibliotecas,    e agora com a chamada navegação na internet, não tem limites,    e muito menos segredo. Tudo está ao alcance dos olhos e nem é    preciso esperar. Etapas do aprendizado podem ser queimadas, nada pode deter    a vontade de saber.      
Essa nova maneira de conceber o aprendizado, a idade e o tempo interfere muito    nas noções de autoridade religiosa, hierarquia e poder religioso,    dando lugar a contradições e conflitos no interior do candomblé,    questionando a legitimidade do poder dos mais velhos, provocando mudanças    no processo de iniciação sacerdotal.      
VIII
Ainda hoje nos candomblés do Brasil procura-se ensinar que a experiência    é a chave do conhecimento, que tudo se aprende fazendo, vendo, participando.    Cada coisa no seu devido tempo. Assim, o conhecimento do velho é o conhecimento    legítimo, ao qual se chega ao longo de toda uma vida. Roger Bastide,    que estudou o candomblé na década de 50, escreveu que "são    os sacerdotes que têm a noção do valor do tempo; é    o tempo que amadurece o conhecimento das coisas; o ocidental tudo quer saber    desde o primeiro instante, eis por que, no fundo, nada compreende" (Bastide,    1978, p. 12).      
Toda a hierarquia religiosa é montada sobre o tempo de aprendizagem    iniciática, numa lógica segundo a qual quem é mais velho    viveu mais e, por conseguinte, sabe mais. Mas para o jovem de mentalidade ocidental,    o tempo urge, o tempo deve ser vencido. A palavra escrita é o meio de    acesso ao saber e a oralidade não faz mais nenhum sentido. Só    faz sentido quando se acredita que a fórmula aprendida pela via da oralidade    é a única capaz de se mostrar eficaz, mas isso é uma imposição    religiosa defendida apenas pelos amantes da tradição, seja lá    o que isso possa significar. Numa sociedade como a nossa, em que a ciência    já desmascarou o segredo, é difícil acreditar que tudo    tem o seu tempo, e que é preciso esperar a hora certa, pois a vida diária    e a luta pela sobrevivência se encarregam de mostrar o contrário.    Em nossa cultura, é premiado quem chega primeiro.      
Os membros de um candomblé são classificados basicamente em    duas grandes categorias de idade iniciática: os iaôs, aqueles    iniciados há pouco tempo e que formam o grupo júnior, e os ebômis,    os iniciados há bastante tempo e que assim são capazes de realizar,    com autonomia, atividades rituais mais complexas, o grupo sênior. A palavra    ebômi, do iorubá egbomi, significa exatamente "meu    mais velho", e era assim que na antiga família poligínica iorubá    as esposas mais velhas se tratavam. Iaô, nessa família tradicional,    era a denominação dada às esposas mais novas. No candomblé,    enquanto os ebômis conquistam certa autonomia em relação    à autoridade suprema da mãe ou do pai-de-santo e são encarregados    de tarefas rituais importantes, de prestígio dentro do grupo, com privilégios    e honras especiais, as iaôs (ou os iaôs, pois há    muito a palavra iaô perdeu no candomblé a conotação    de esposa), os jovens iniciados, enfim, só fazem obedecer, usando símbolos    e cultivando gestos e posturas que denotam a sua inferioridade hierárquica.    Lembrando que a estrutura organizacional do candomblé é uma reprodução    simbólica da estrutura tradicional da família iorubá, de    resto perdida no Brasil, evidencia-se a importância da experiência    acumulada na constituição dos grupos de autoridade. Os ebômis    são os que sabem, porque são mais velhos, viveram mais, acumularam    maior experiência. Sua autoridade é dada pelo tempo acumulado,    que pressupõe saber maior.      
Como o candomblé é religião e em nossa sociedade a religião    é uma das esferas autônomas da cultura (o que faz da religião    dos orixás na América algo bem diferente do que foi na África),    a noção de tempo acumulado no âmbito religioso entre nós    tende a ser, e cada vez é mais, descolada do tempo que marca o transcurso    da vida. Pode-se ingressar no candomblé, por livre escolha, em qualquer    momento da vida, em qualquer idade. Assim, a idade biológica da pessoa    não é a mesma da idade iniciática, de modo que um jovem    iniciado há muito tempo pode ser o ebômi de um iaô    que se iniciou depois de maduro. O tempo de iniciação transformou-se    no tempo que realmente conta. Evidentemente, nos primórdios do candomblé,    a passagem de uma sacerdotisa júnior para a categoria sênior era    o resultado natural do saber religioso acumulado durante o tempo necessário,    durasse quanto durasse. O reconhecimento por parte do grupo de sua capacidade    e competência na realização de atribuições    rituais complexas era resultado natural do fazer dessas atribuições,    combinado com a dedicação religiosa expressa por meio de sucessivas    obrigações rituais a que se submetia a devota. Cuidar de seu orixá    pessoal, oferecendo-lhe os necessários sacrifícios periódicos,    e trabalhar com autonomia em benefício do grupo eram as condições    que indicavam maturidade, competência nos ritos, capacidade de liderança,    saber e autoridade.      
Numa determinada época da consolidação do candomblé,    foi necessária a criação de rito de passagem específico    que tornasse público o reconhecimento da condição de senioridade,    rito hoje conhecido pelo nome de decá, a partir do qual a iaô    assume a posição de ebômi, de mais velho. Agora fazendo    parte de uma sociedade em que o tempo que conta é o tempo do calendário,    dotado em nossa cultura de objetividade inquestionável, o candomblé    acabou por mensurar em anos o tempo de aprendizagem do iaô. Depois    de se submeter ao grande rito de passagem que o inclui no candomblé como    sacerdote júnior, a chamada feitura de orixá, o iaô    pode, depois de anos de aprendizado, e tendo cumprido os ritos intermediários,    ascender ao grau de ebômi, conquistando assim sua senioridade.    Como sênior poderá receber incumbências de mando, assumir    tarefas de prestígio e iniciar novos adeptos, podendo, se quiser, abrir    seu próprio terreiro. Em algum momento no meio do curso do século    XX - e ninguém sabe dizer como foi nem de onde veio a iniciativa    -, a lei-do-santo, espécie de código consensual não    escrito que regula os costumes e a vida religiosa nos terreiros, em permanente    constituição, fixou em sete o número mínimo de anos    necessários ao recebimento do grau de senioridade, o tempo do decá,    tempo de autoridade. O decá é o coroamento de uma seqüência    de obrigações que inclui, depois da feitura, a obrigação    de um ano, a de três anos e finalmente a de sete anos, tudo definido numa    escala de tempo ocidental. Evidentemente, atrasos eventuais em qualquer etapa    arrastam para adiante o período total.      
O tempo de iniciação, agora computado em termos de anos, meses    e dias, e em certos casos horas, impõe-se como chave do ordenamento hierárquico    no grupo, instituindo-se o que os antropólogos chamam de peking order,    a "ordem das bicadas", uma disposição hierárquica que pode    ser observada nos galinheiros. Ali, uma galinha, certamente a mais forte, a    líder inconteste, bica todas as demais e não é bicada por    nenhuma; uma segunda é bicada pela primeira e bica as outras; uma terceira    é bicada por essas duas e bica as demais, e assim por diante, até    a última galinha, que é bicada por todas e não bica nenhuma.    Esse esquema, muito característico de sociedades de estruturação    social mais simples e de associações iniciáticas, é    rigorosamente observado nos candomblés. Pode ser apreciado na ordem em    que as filhas-de-santo se colocam na roda das danças, na ordem dos pedidos    de bênção - quem beija a mão de quem -    e em quase todos os momentos em que a etiqueta do terreiro imprime a marca do    tempo.      
Um lema da chamada lei-do-santo muito cultivado afirma que o mais velho sabe    mais e que sua verdade é incontestável. Saber é poder,    é proximidade maior com os deuses e seus mistérios, é sabedoria    no trato das coisas de axé, a força mística que    move o mundo, manipulada pelos ritos. Por isso, o mais novo prostra-se diante    do mais velho e lhe pede a bênção, não lhe dirige    a palavra se não for perguntado, pede licença - Agô    ebômi, licença meu mais velho - para falar na sua presença,    oferece-lhe sua comida antes de começar a comer - Ajeum,    vamos comer, servido? -, abaixa a cabeça quando dele se aproxima,    curva-se à sua passagem, inclina-se e o cumprimenta juntando as mãos    - Mojubá, salve! - quando se canta para o orixá    a que este mais velho é devotado. Tudo isso acontece numa ordem na qual    cada um conhece bem o seu posto, ou pelo menos deveria conhecer.      
Contudo, no mundo em que vivem, os jovens aprendem que idade não é    sinônimo de sabedoria. No candomblé, experimentam que nem sempre    os mais velhos em iniciação sabem mais. O jovem aprende no terreiro,    mas pode ampliar seus conhecimentos religiosos por meio de outras fontes, sendo    que a leitura pode ser uma porta aberta que o leva a um universo de informação    sobre as coisas da religião do qual o mais velho nem suspeita. O jovem    perde a confiança no mais velho, contesta sua sabedoria, rompe sua lealdade    para com aqueles que o iniciaram e pode abandonar o grupo à procura de    outros líderes que lhe pareçam mais apropriados, mudando de axé,    como se diz, mudando de terreiro, de família-de-santo, de filiação    religiosa. Muitos que se iniciam hoje no candomblé têm uma aspiração    ocupacional muito clara: desejam ser pais e mães-de-santo, buscando nessa    religião, como acontece nas outras, um meio de vida e uma oportunidade    de ascensão social. Para esses, quanto mais cedo for alcançada    a senioridade, melhor, não raro burlando a contagem dos sete anos.      
A busca do conhecimento transforma-se, então, numa luta contra o tempo,    invertendo completamente sua noção original, quebrando a idéia    de que o tempo é a soma das experiências de vida. O terreiro passa    a ser visto como uma escola ocidental, que estipula prazos e, ao final deles,    outorga títulos e diplomas que atribuem direitos no mercado profissional.    O lugar do tempo africano, o tempo do mito, é tomado pelo tempo do relógio.      
IX
Velhos iniciados contam que nos idos e saudosos tempos do candomblé    antigo o recolhimento à clausura, onde se processa a iniciação,    não tinha duração pré-determinada. O filho-de-santo    ficava recolhido no terreiro o tempo necessário à sua aprendizagem    de sacerdote e à realização de todas as atividades que    os ritos de uma feitura de orixá envolvem. Podia ficar meses, muitos    meses, isolado do mundo, totalmente mergulhado na sua iniciação.    Isso ficou para trás. Hoje, cada iniciação, que se faz    num período que não soma os dias de um mês, tem de ser cuidadosamente    planejada, de modo a encaixar os dias de recolhimento do filho-de-santo nas    suas férias de trabalho ou nos momentos vagos deixados pelos compromissos    da vida secular. O tempo da iniciação passa a ser regulado pelo    tempo do mercado de trabalho. O tempo africano do terreiro é vencido    pelo tempo da sociedade capitalista.      
Nesta nossa sociedade do tempo irreversível, cada vez mais as imagens    e referências do tempo circular vão se perdendo: o relógio    analógico, com seus ponteiros sempre dando a volta para retornarem ao    ponto zero, são substituídos pelo relógio digital; os supermercados    24 horas e outros negócios essenciais ao consumo na vida cotidiana não    fecham para descanso; os canais de televisão ficam no ar noite e dia;    trabalha-se em qualquer período; a internet mantém ininterrupto    o acesso aos arquivos de informação dos computadores ligados na    rede mundial; até o amor se faz a qualquer hora nos motéis full-time;    a eletricidade há muito acabou com a escuridão e fez da noite,    dia; a engenharia dos transgênicos nos faz sonhar com uma natureza transformada    a cada colheita. Se até na natureza o tempo cíclico vai perdendo    importância, que dirá na vida do terreiro.      
Os velhos do candomblé falam do passado como um tempo perdido, que    já não se repete, vencido por um presente em que impera a pressa,    o gosto pela novidade, a falta de respeito para com as caras tradições    e, sobretudo, o descaso para com os mais velhos. Dizem que "o candomblé    hoje vive de comércio, é pura exibição", reclamam    que "uns querem ser mais que os outros", falam que "os que mal saíram    das fraldas, que não sabem nada, já empinam a cabeça para    os antigos", lamentam que "os velhos babás e as velhas iás    não tem mais voz em nada", asseveram que "os jovens o que querem é    sugar os seus mais velhos e depois chutar seu traseiro e buscar outro lugar    onde podem mandar à vontade". Falam com saudade daquele mundo ideal que    ficou para trás e gostam sempre de frisar que "no meu tempo não    era assim", repetindo que "hoje ninguém mais tem humildade, querendo    saber mais do que os antigos, essas crianças presunçosas, esses    jovens cheios de vento". Seu discurso triste revela certamente muito de nostalgia    da juventude, mas é também o testemunho verdadeiro de perdas efetivas.      
O presente agora se descortina como ruptura, descontinuidade. O passado não    explica mais, nem se completa no presente. Os mitos vão sendo esquecidos,    os odus simplificados, os deuses ganham ares mais condizentes com a modernidade.    Os jovens acusam os mais velhos de levarem para o túmulo segredos iniciáticos    que não transmitem para ninguém, enfraquecendo os mistérios    da religião e sua força, o axé, mas de fato não    se importam muito com isso. Acreditam menos na existência dos segredos    do que os mais velhos diziam acreditar. Aprenderam que a tradição    é e pode ser construída a cada instante, pois a lei-do-santo,    que ordena as tradições do candomblé, não tem mais    do que um século de vida, nem uma única versão, e está    sempre mudando. E levam adiante sua religião, pensando no futuro.      
X
Para o Ocidente, o futuro é a grande incógnita a ser decifrada,    controlada, um tempo a ser planejado para melhor ser usufruído. A esperança    sempre se deposita num tempo vindouro para o qual são pensadas as grandes    realizações que devem ser introduzidas em prol da felicidade humana.    Investe-se no futuro. Olha-se para o passado procurando os erros cometidos e    que devem ser evitados no presente para garantir um futuro melhor. A história    ensina como agir com sabedoria e responsabilidade em face do devir. Um emblemático    mote de Karl Marx diz que na história nada se repete, a não ser    como farsa. Para o africano tradicional é o contrário: a repetição    é o almejado, o certo, o inquestionável. O novo, o inesperado,    o que não vem do passado, é o falso, o perigoso, o indesejável.      
O candomblé dos dias de hoje está posto entre esses dois conceitos    opostos de tempo. Um e outro remetem a concepções diversas de    aprendizado, saber e autoridade. Levam a noções divergentes sobre    a vida e a morte, a reencarnação e a divinização.    Nesse embate, a religião muda, adapta-se, encontra novas fórmulas    e adota novas linguagens. Os orixás ganham novos territórios,    conquistam adeptos nas mais diferentes classes sociais, origens raciais e regiões    deste e outros países. O que a realidade social das religiões    no Brasil tem mostrado é que a religião dos orixás cresce    e prospera (Pierucci e Prandi, 1996). Sobretudo se transforma, cada vez mais    brasileira, cada vez menos africana. Mesmo o movimento de africanização,    que procura desfazer o sincretismo com o catolicismo e recuperar muitos elementos    africanos de caráter doutrinário ou ritualístico perdidos    na diáspora, não pode fazer a religião dos orixás    no Brasil retornar a conceitos que já se mostraram incompatíveis    com os da civilização contemporânea. O tempo africano perde    sua grandeza, vai se apagando. Permanece, contudo, nas pequenas coisas, fragmentado,    manifestando-se mais como ordenador de um modo peculiar de organizar o cotidiano    característico de uma religião que se mostra exótica, extravagante    e enigmática.      
E pouco a pouco o povo-de-santo acerta seus relógios. Sabe que o candomblé    deixou de ser uma religião exclusiva dos descendentes de escravos africanos    - uma pequena África fora da sociedade, o terreiro como sucedâneo    da perdida cidade africana, como ainda o encontrou Roger Bastide quase meio    século atrás (Bastide, 1971, pp. 517-518) - para se tornar    uma religião para todos, disposta a competir com os demais credos do    país no largo e aberto mercado religioso. Uma instituição    dos tempos atuais em um processo de mudança que reformula a tradição    e elege novas referências, para o bem e para o mal. O tempo é tempo    de mudar.
(Texto de Reginaldo Prandi) 










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