quinta-feira, 8 de novembro de 2012

A Religião do Outro

"A religião do outro

Sempre que posso, evito ver as coisas do aqui e agora de forma fotografada pelo próprio braço esticado, algo tão em moda, mas tão bizarro. Muitas vezes, contrario o imediatismo e o ditado da hora. Assim, ao invés de olhar para frente, olho para trás.

Há dias, um acadêmico enviou-me um texto, que – segundo ele – ia ao encontro de críticas que expus numa aula sobre nossa liter...
atura nos tempos coloniais. A centralidade dos questionamentos referia-se à atuação do padre José de Anchieta, um jesuíta a serviço da catequese; esta em consonância com a expansão e exploração mercantilistas dos portugueses.

Como se sabe, aos católicos do séc. XVI, nossos índios eram vistos de forma semelhante de como os bárbaros haviam sido vistos pelos romanos na Idade Antiga. Por isso, Anchieta flechou o coração da cultura de algumas nações silvícolas. Suas flechas – envenenadas pelos preceitos, conceitos e preconceitos do catolicismo – foram diretas a práticas dos indígenas, destacadamente a antropofagia.

Anchieta, olvidando que ele próprio era um tipo de antropófago – pois, pela “hóstia sagrada”, alimentava-se do corpo e, pelo vinho, ele bebia o sangue de Cristo –, não entendia que a antropofagia também se tratava de um ritual, mas sem abstrações, sem simbologias. Entre indígenas, tudo era concreto. A carne e o sangue do outro eram verdadeiros, quentes. Pela antropofagia, cria-se revigorar a vida da comunidade.

Indago: há diferença de base para a crença entre a essência da antropofagia dos indígenas com a eucaristia dos europeus “civilizados”? Não! Mas a “incompreensão” do sacerdote fê-lo exorcizar a antropofagia, vista como obra do Guaixará: o Satanás.

Depois, muitas práticas religiosas, incluindo já as africanas, passaram a ser tidas como obras a serem exorcizadas. Nesse sentido, o último dos exorcismos está vindo pelas redes sociais de um determinado grupo empresarial, que contém uma Igreja Evangélica no rol de suas atividades.

Indignado como o título da telenovela – “Salve Jorge”/Globo –, que para muitos religiosos, em um pôster, já virou “Queima o Jorge”, o jornalismo daquela empresa – por meio da matéria “A influência espiritual de ‘Ogum’ nos lares evangélicos” – adverte seus universais “soldados”: “Sem que percebam e mesmo que não venerem ‘Ogum’, muitos lares evangélicos cederão espaços para que a entidade espiritual entre e trabalhe... O termo ‘salve’ denota saudação respeitosa. Ao ressoar no recinto ‘Salve Jorge’, muitos estarão saudando conscientemente o espírito...”

Na continuação da matéria é dito que, quando Jorge entrar, Deus sairá, pois este “...não divide o espaço com outro espírito”. Incrédulo como sou, se me contassem isso, eu não acreditaria. Mas eu li essa... no site da Igreja.

A despeito da explicitação da intolerância religiosa desses evangélicos, que não admitem a intolerância alheia, o mundo segue. E pelo menos a arte, com destaque à música, também tem lá suas flechas; muitas delas voando em sentido oposto às religiões. E para inquietação desses anchietas hodiernos, algumas das flechas vão ao cerne da questão: o mercado.

Nisso, Zeca Baleiro é exemplar, quando diz: “A banda cover do diabo// Acho que já tá por fora// O mercado tá de olho// É no som que Deus criou// Com trombetas distorcidas// E harpas envenenadas// Mundo inteiro vai pirar// Com o heavy metal do Senhor”.

Em suma, nesse mar de ignorâncias, interesses e intolerâncias, temo pelo dia em que, como na Irlanda do Norte, possamos ter o nosso Bloody Sunday. Detalhe: não temos U2 para cantar a tragédia.

*ROBERTO BOAVENTURA DA SILVA SÁ - dr. em Jornalismo/USP; prof. de Literatura/UFMT"

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